sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

CASA PEQUENA E CURTA

Meus livros se foram...
Um a um
Muitos, dezenas, quase cem
Evitei emoção ao acenar lenços
Não os folheei em busca de fotos, bilhetes indiscretos
Cartas, anotações, retalhos de poesias
Que através dos anos neles esqueço.

Tracei o destino para outras mãos e olhos
E disse adeus
Aos velhos, já em cadeiras de rodas
Mancos e despencados, abracei antes de embarcarem
Na caixa de papelão.
Alguns, e eram muitos, que esperavam novo encontro
Na releitura há décadas pretendida, com fungos me rejeitaram.

Meu dicionário de capa azul em cinco volumes também se foi.
A ele, que jurei fidelidade eterna, traí.
Ao Frank Herbert também. As tempestades de areia  
 Nos desertos de Duna quase me engolfaram, e fugi dos vermes e da sede.
Peço perdão aos reis, nobres, plebeus e a todo povo por abandoná-los
Principalmente aos franceses e ingleses, que nas suas cortes me receberam galantes 
Confidenciaram segredos e me fizeram testemunha da sua História. 

Grandes amigos empilho numa torre de despedida
Nela se equilibram os que de todo coração amo desde a infância
Os que levava a passear na minha bicicleta, durante
Fortuitas tardes, procurando um banco de praça, um recanto novo para ler.
Os da juventude, onde parágrafos me propunham delícias, de toques
Leitos e beijos, e me alertavam com seus finais trágicos
Para os perigos do amor.


Casa nova. Pequena. Curta. 
Cada centímetro de gaveta ocupado
Cada pedaço de armário da mesma maneira restrito.
Muitos livros ainda... Os não lidos, os indispensáveis
Os de cabeceiras, os lidos e relidos, os que nunca abandonarei
Permanecem para amenizar a ausência dos que partiram
Em toscas caixas de papelão.


Óleo de John Frederick Peto - ( 1854/1907)
Pintor Americano.


Terê Oliva








quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

SAL.

Mulher solitária.
Por amigo, um cão em pele e osso
Tal qual ela que a carne o lobo comeu.

Estátua de sal transformada
Ao se voltar e olhar o passado
Sem amor, perdido pelas mãos furadas.

Procura o jeito, sem jeito possível
Para contar tudo o que houve
No nada que há, se é que um dia houvera.

Confusões de salina amante
Que a amar se atreveu
Apesar.

Tela de Peder Severi Kroyer - (1851/1909)
Pintor Norueguês.

Teresinha Oliveira.

O CAOS DAS LEMBRANÇAS RASGADAS

Mãos doloridas de tanto rasgar papel. 
Não consegui me esquivar da tarefa, nem outra solução se apresentou mais razoável do que simplesmente rasgar as agendas que vou guardando ano após ano, como se fossem diários, que não revelam emoções mas a praticidade da vida.
   Foram para o lixo em pequenos pedaços de lembrança os aniversários, as consultas médicas, o telefone do rapaz simpático que tornava a piscina azul como céu, e mais tantos: da doceira que assava e confeitava bonito como ela só os bolos de toda festa que por aqui se fazia, da faxineira que mais faltava do que vinha, da amiga que foi para tão longe que desapareceu nas águas do Pacífico, do companheiro querido, muito querido, das batalhas perdidas contra o cigarro que com o namorado mudou-se para Nova York e  não deu mais  notícias, de gente que já morreu. 
  Gente velha, gente jovem que deixou o sorriso grudado no papel e partiu para os campos onde o carteiro não chega para entregar minha saudade.
   Os filmes se foram nos dias anotados do cinema à tarde. Também as peças de teatro, os almoços na casa de quem e com quem, as listas do mercado, o saldo assustador da conta bancária, as missões inadiáveis, as tarefas não cumpridas.
  Entre meus dedos dormentes escorregam para o saco preto as alegrias dos casamentos, dos preparativos para a igreja, a festa, os vestidos, flores, música, convites...
  Tristezas também são revividas, como o endereço do hospital onde meu pai esgota seus dias, os títulos e escritores dos livros velhos comprados quase de graça nas bancas de jornal da Tijuca, a serem lidos na enfermaria enquanto a esperança mingua.
Porém no correr de páginas que a vida impõe, boas-novas chegam voando e cegonhas espalham suas penas na espera dos meses seguintes. Nasceu linda e gorducha, olhos verdes como a mãe.
 Anotações e bichinhos desenhados nos cantos possíveis. Mania boba, mas cada qual elege a sua; nada de retas ou rabiscos, bichinhos... Assim coelhinhos, peixinhos e todo um zoológico  no diminutivo visitam o papel.
Continuo rasgando e me distancio em outro tempo.
Namorado, ou quase isso. Sem a agenda, permaneceria esquecido.
Mais uma, mais um ano, mais gente, mais farpas, mais poesia, mais lembranças...
  Pensei comprar uma agenda eletrônica, mas nela seria impossível guardar a vida.




Ilustração de Bradshaw Crandell - (1896/1966)
Ilustrador Americano.


Terê Oliva

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A ARTE DO NÃO

Mesmo nessa vida louca que vivemos hoje, sem tempo e cuidados, nossa atitude frente ao ser rejeitado pelo nosso amor deveria ser pontilhada com toques de elegância, como era usual em dias de barroco e rococó.
A grande maioria de nós já atravessou as turbulentas águas do término de um amor, ou mesmo e mais comumente, à inexistência dele, apesar dos longos olhares que nos acariciam, e incomodam por partirem dos olhos errados. 

Os certos andam por aí e quase sempre miram outras íris.
Raríssimos são aqueles que, agraciados com gotas divinas, encontram sua alma gêmea e vivem felizes no sempre. Sempre que para os míseros mortais não dura mais que um curto espaço de tempo, do engano ao seu fim inequívoco..

A eternidade amorosa  é um átimo entre o azedume de um beijo e o não consumado.
 Constrangedor porém é pronunciar o não diante da face esmoleira do pobre apaixonado que finge, até para si mesmo, desconhecer a decisão no simples monossílabo.
Não! O problema não é seu, é meu. Não! Alguns dias não vão demover meu desejo de ficar só. Não! Não há outra pessoa. Não! Nem o Zé da esquina, nem o João da infância. Não! Último beijo só emociona em cena de filme, e assim mesmo quando o diretor é talentoso. Não! Não insista por favor, sua saliva não é poção mágica. Não! Claro que o amor surgirá novamente, só por isso ele mantém essa fama de eterno. Não! É tarde, preciso ir. Não! Tenho certeza que não mudarei de ideia. Não! Não telefone nem marquemos encontros. Amigos, bons amigos. Não! Nada de beijos de despedida. Amigos não se beijam na boca. Solta minha mão, por favor, preciso mesmo ir. Ora,para casa, dormir.
Como são inconvenientes as emoções daquele a quem deixamos de amar...
Aceno um até logo com as mãos dormentes e babadas pelos muitos beijinhos de adeus.
Até logo. Até amanhã. Até nunca mais !
Limpo-as com o gel antibacteriano que sempre carrego na bolsa, e o telefone quase delas escorrega na pressa do atender.
Alô...Oi Ricardo. Onde você está? A ligação está péssima...


Tela de John Callcott Horsley  -  (1817/1903)
Pintor Inglês.


Teresinha Oliveira
Terê Oliva
http://tereoliva.blogspot.com.br


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

COISA GRUDENTA.

Mágoa é coisa grudenta
Que não se lava ou dissipa no ar
Apesar das tentativas vãs
Do ser que as carrega no peito
Como tatuagem que em sangue se talhou.

Nos dias de alegria incomum, por onde o riso é farto
Cercado por aqueles que parecem não tê-las
Ao menos não tantas, talvez mais rasas
As grandes no ser magoado
Retornam densas numa nuvem escura
Através do passado que se enforcou
Mas ainda agoniza na ponta da corda.

Tela de Leo Putz - (1869/1940)
Pintor Alemão.

Teresinha Oliveira. 

AS LÁGRIMAS DA CEIA.

Corto aves e nacos do porco, pico temperos e lembranças.
Fatio as cebolas roxas que sem intenção trazem no sumo
As lágrimas que dele não são.
Vem de longe, de lá de trás, de um atrás escondido
Num ano sem número, o motivo que esquecido julguei.

Entretanto
Nas rodelas, máquina do tempo
Sorrateiro se infiltrou.

Tela de Lilly Martin Spencer - (1822/1902)
Pintora Americana.

Teresinha Oliveira.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A DISNEY NOS CÉUS

A chuva ameaçou a alegria de todos. Porém, ninguém desviou do caminho da praia na Noite de Ano Novo.
A organização da festa, a água levou.
As roupas novas, branquinhas pedindo paz, logo perderam o vinco frente ao temporal que desabou, mas diferença não fez; muito menos a promessa do resfriado futuro assustou aos eufóricos amigos que se aglomeraram sob as tendas previamente armadas.
Mas felicidade mesmo, de arregalar olho e quase perder o fôlego foi da Manu,  que à meia-noite, com seus quatro anos bem despertos, ao ver os fogos explodindo no céu gritou: " Mamãe!!! Nós estamos na Disney ! "



Tela de Kim Roberti
Pintor Americano Contemporâneo.


Terê Oliva
http://tereoliva.blogspot.com.br