quarta-feira, 31 de outubro de 2018

LÁPIS, PAPEL E PACIÊNCIA


Pai.... Paiiii. Vamos desenhar?
Tá legal, eu procuro os lápis. O sr. não esqueceu na sua prancheta no trabalho? Calma... Vou achar. Peraí.
Gilete? Pai, isso não existe mais. Tenho apontador, não serve? Que porcaria, nada. Aponta, não aponta? Tá bom, tenho um estilete por aí...
Tem HB, 4B. 6B e até um 8B. Quero esse! Não gosto de grafite clarinho, mal se vê. O 8B pode ser um carvão, mas eu prefiro. O sr. é o sr., eu sou eu. Depois vai pedir emprestado para sombrear, já estou até vendo...
Por que jogou fora? Estava bonito. Tava sim. Vou pegar mais papel. Papel vegetal? Pai, tás de sacanagem comigo kkk Sacanagem não é palavrão! Não é não.
Tenho folhas grandes, como o sr. gosta, e quadriculadas miudinho, quer? É...não é branco, é pastel. Cor-de-rosa? Não, é pastel. Claro que eu enxergo bem, o sr. é que é implicante.
Tenho lápis de cor sim. Não, claro que não são importados, comprei na papelaria ali da esquina. Nanquim? Não tenho nem caneta tinteiro. Régua T? Tem uma de plástico, 30 cm. Vou buscar. Esquadros? Não tem. Compasso? Praquê? Borracha tem aos montes, e das boas, macias e brancas.
Iluminura? Não acredito. Esses cavalos e flores são para uma iluminura? Que mania de cavalo. Melhor borboletas, abelhas, pássaros, até cervos, vá lá, mas cavalos...
O café não está fresco, é de manhã, garrafa térmica. Depois faço, agora tô com preguiça. Daqui a pouco faço. Daqui a pouco. Logo. Logo.
Tá bom agora? Já abri as cortinas e acendi a luz, mais não posso fazer. Entardecer é assim mesmo, lusco-fusco. Quando a noite cair de vez, melhora.
Oh pai, tu tá muito chato. 

Desisto. Vou ler um livro.
Tela de Henri Fantin Latour - (14 January 1836 – 25 August 1904) was a French painter .
Terê Oliva

NINHO MORENO


Vem cá, vem morena
De olhos miúdos a me assustar
Faz cafuné, deitados na rede
Que vento levado vem balançar.

Não briga comigo
Seu amor não merece
Esse olhar de zanga seu
Deixa eu, menino, em seu colo esquecer
Toda lida que a vida me deu.

Vem cá, vem morena
Outro amor juro que não há
Não como o seu...
Quero ser passarinho
Seus cabelos o ninho
Para me esconder

Da dura labuta, das pedras, do chão
Da briga pelo pão prá todos comer

Tela de Louis Aston Knight -  (1873–1948) was a French-born American artist.
"A Summer Evening Beaumont"

Terê Oliva

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O PÓ DE DOMINGO


Como o pó há dias espalha-se incólume por onde quer que olhe, muni-me de panos e paciência para livrar-me dele e do incômodo que tal me dá.
Limpa aqui, limpa acolá...
Quase espirro mas persevero.
Nessa sofreguidão sem sentido abro gavetas esquecidas, aquelas que quase nunca se abre, por não haver nada útil dentro na rotina dos usos.
Logo assim encontro o Tarô de Marseille que mal lembrava possuir, e ler, durante uma fase pseudoesotérica em que mergulhei, por motivos tantos que não cabe aqui contar.
Minha cabeça analítica, até mesmo fálica ao observar as coisas todas, endoideceu ao cheirar incensos, ao viajar nas luzes dos cristais.
Como loucura muitas vezes é como dor de dente, dá e passa, assim também comigo se deu.
Porém o Tarô, cada arcano uma obra de arte a se admitar e pensar, guardei.
Guardei num saco preto como foi-me ensinado a fazer.
No escuro ele permanece por anos, e cabe a mim decidir agora trazê-lo à luz ou não.
Como ele conversa comigo e bem entendo o recado que sussurra aos meus ouvidos, talvez me poupe de abri-lo.
Não temo a Morte, mas o Enforcado.
Não temo a Lua, mas a Papisa.
Sem muito oscilar, entre o pó e meu destino, escolho o pó
Que é mais fácil de limpar.


Tela de Elin Danielson Gambogi - 1861/1919 - Finlândia.
Terê Oliva

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sábado, 6 de outubro de 2018

GRATIDÃO


Há um mistério na gratidão que vai além de si mesma
Se é comum a todos e cada qual o decifra à sua maneira é impossível saber.
Um sentimento raro, que corre ligeiro e atrás da primeira árvore se esconde
Antes mesmo de se contar até 10
Na celeridade da vida mal tem tempo de respirar.
Sem o viço da alegria, os batimentos cardíacos dos romances
A gratidão em sua quietude, muitas vezes, atravessa os espíritos despercebida.

Em mim provoca uma emoção delicada, um bem-querer sem alardes
Àqueles que me amaram sem o meu consentimento
Amor espontâneo, e por tal, mais precioso que outros tantos
Que se foram aos ventos sem deixar marca.

Um sorriso involuntário, que só percebo quando o desfaço
Sempre surge ante a lembrança das pessoas que através de suas dádivas
Suavizaram meus passos
Se não agradeço, nem lhes conto dos meus carinhos, não julguem por esquecimento
É apenas meu sem jeito ao lidar com esse tanto
Timidez que lá dentro de mim carrego sem que ninguém lhe saiba o peso.

'Flower Makers' (1896) - Samuel Melton Fisher - 1859/1939
Pintor Britânico.
Terê Oliva
http://tereoliva.blogspot.com.br