domingo, 30 de outubro de 2011

O PEDREIRO E A RATAZANA.

Nada mais repulsivo que barata. Nem mesmo lagartixa ou aranha provoca tanto asco; mas rato também tem papel de destaque no terror feminino.
Conheço mulher que ao se deparar com minúsculo ratinho em sua calçada, perdeu a compostura e, com seus quase cem quilos se atirou nos braços esquálidos do vizinho por quem sempre estivera apaixonada.
  O coitado, que voltava da padaria com o pão de todo dia, desabou sob o peso de tanto chocolate e paixão frustrada.
  O bicho escapou, mas o romance entre os dois começou ali, nos paralelepípedos.
Foi nessa mesma rua, numa casa grande e antiga, que D.Ivone decidiu construir a piscina há muito sonhada. Calorenta como mulher em menopausa, não via ela outra solução para amainar seus suores do que passar os dias dentro d'água.
Juntou dinheiro, fez orçamento, escolheu lugar no enorme terreno e contratou o pedreiro. Nelson era sujeito jovem e forte, apto para fazer a piscina tão desejada. Chegou com experiência, musculoso e sábio como ele só; recomendado por um outro que só disso vivia. De águas, filtros, bombas e cloro dava aula para D. Ivone, que arregalava olho e ouvia afiado, assustada com tanta necessidade. Ela que sempre pensara ser fácil cavar buraco e encher d'água se admirou ante tanta parafernália só para ficar de molho no cruel verão.
A obra começou frenética! E cava chão, e compra cimento, areia e azulejo, e acaba a areia e se compra mais, e se faz comida para o pedreiro, porque esse foi o combinado: Nelson não comeria de marmita, só almoço quentinho, feito na hora e cheiro por D. Ivone.
Transcorre uma semana de pó, mas na segunda-feira seguinte o Nelson não aparece. -Semana Inglesa!- O que é isso? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. Toda família trabalha à La Brasileira, inclusive sábado, quiçá domingo. Nem Deus descansou na segunda...Mas a cervejada no fim-de-semana deixou os braços e o cérebro do pedreiro sem ação, e ele emendou a segunda com o sábado e o domingo para recompor suas forças.
Terça recomeça, já sem o afã da novidade o trabalho rende menos, e ele até tira um cochilo depois do bis no almoço, que não cansa de elogiar. D.Ivone agradece com sorriso torto e vai novamente ao mercado.
Logo convence a dona da obra  que um banheiro é essencial perto da piscina; um chuveirão também. Afinal é falta de higiene mergulhar nos milhares de litros clorados com o corpo suado. 
O entulho da piscina se acumula num canto e se espalha por toda casa, como verme de sujeira. E se compra mais cimento, mais areia, mais azulejos...Agora também torneiras, telhas, canos, madeiras e outras muitas quinquilharias, porque  a obra cresceu, como a ansiedade para inauguração.
Alguma segunda-feira chega e ele não. Nem terça, muito menos quarta.
D.Ivone se aborrece, o marido briga culpando-a pela ideia de cavar tamanho frescor; mas o pedreiro conta história triste, doença de filho pequeno. Pede e recebe adiantamento de salário, trabalha mais alguns dias e desaparece de vez.
    Foi nesse quintal de D.Ivone, entulhado com o sonho da malfadada piscina, que um rato parrudo e assustador fez domicílio. Tanto se sentia em casa, que passeava no claro do dia sem temer quem quer que fosse. Roubava o queijo das ratoeiras com maestria, sem sofrer nenhum arranhão, e cada vez mais engordava.
Ela amaldiçoava o roedor, e também o pedreiro que lhe fez moradia, pois era no monturo dos restos da obra que o bicho vivia confortável e incólume. Não havia veneno que o matasse ou pedrada que o atingisse. Sua toca era um forte inexpugnável  onde ninguém se atrevia mexer.
Procurou-se outro pedreiro, mas foi em vão. Nem João nem José. Mesmo oferecendo salário maior, semana inglesa e almoço, ninguém surgiu. Todos se diziam ocupados até o próximo tempo do nunca.
O rato, dali não arredava pata, já pensando constituir família. 
Antes que a raiva do pedreiro e da ratazana a enlouquecesse, ela desistiu de vez da piscina. Comprou uma de plástico mesmo, na promoção da grande loja que dividia a penúria de seus clientes em incontáveis meses, e sem outra saída, contratou uma empresa, que cobrou o peso do bicho em ouro, para matá-lo. 
Pelo menos esse assassinato amainou seus rancores.
No Mercadão, escolheu toalhinhas de todas as cores para enxugar o suor do rosto, e até hoje espanta o calor tomando banho de mangueira no quintal.

Tela em óleo de Russell Gordon.
Pintor e Fotógrafo Americano.

Teresinha Oliveira.




  

ESFINGE.

Almejo uma toca, um canto
Uma quina de muro.
Noventa graus escuros, trevas.
Reto em pontos ao infinito
Sem réstia de luz.
Morte prematura na vida estática.

As rimas mais ricas possíveis
Estranhas, escalafobéticas...
Para um epitáfio de sombras
Bordar no linho da mortalha
Da Esfinge de carne e ossos moídos
Na calma do não mais esperar.


Tela de Konstantin Kacev -(1967)
Pintor Russo Contemporâneo.

Teresinha Oliveira / 1995.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

POEIRA.

Você?
Virou poeira de lembrança.

Eu?
Bati asas. 
Espargi o pó.
Voei.


Tela de Henrietta Emma Ratcliffe - (1859/1928)
Pintora Inglesa

Teresinha Oliveira.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

VERBOS.

Não desejo pensar em nada.
Nem conhecer ninguém.
Nem ler nenhum livro.
Nem viajar, nem comer, nem dormir.
Nem mesmo me lavar
Ou chorar ou rir
Muito menos amar.

Já se esgotaram em mim
Todos os verbos.
Não sou palavra
Sou apenas carne
E rala paixão de viver
Que consome em si a essência
Daquela que existiu.


Tela de Gustave Adolphe Mossa - (1883/1971)
' Pandora '
Pintor Francês

Teresinha Oliveira.


DIAS ESTRANHOS.

Dias estranhos, estranhos dias
Esses dias de agora.
Desapercebidos no sorriso nato
Na alegria corriqueira ao olhar de lado.
Bem-estar periférico, tal qual visão
De imagens presumíveis
Que entorpecem minha alma boba
Enfeitada de girassóis sempre.


Tela de Edmund Charles Tarbell - (1862/1938)
Pintor Impressionista Americano.

Teresinha Oliveira.

sábado, 15 de outubro de 2011

VULCÃO.

Sou um vulcão quieto
Mas não extinto.
Na espreita sempre
Sensível
Ao calor da terra.

Tela de Clemente Tafuri - (1903/1971)
Pintor Italiano.

Teresinha Oliveira.

DOIDA MULHER.

Doida mulher essa que encaro
Nas noites, sozinha.
De companhia apenas melodias e licor.

Ela junta pedaços e cacos e retalhos
Das muitas mulheres que foi
Nos dias de engano.

Reúne lembranças do nada que fez
Ante tanto feito.
Envolta na suave angústia
Do tempo restante para tentar.

Tela de Valentin Gubarev - (1948)
' Salute Modigliani'
Pintor Contemporâneo Russo.

Teresinha Oliveira



GARGALHADA.

A vida não é possível
Sem a força da explosão
De uma boa gargalhada.

Catedral de Bamberg - Alemanha

Teresinha Oliveira.