sábado, 26 de outubro de 2013

VITRAL DE UÍSQUE


Um raio de lua atravessa a garrafa de uísque e espalha cores de vitral no chão da mesa de mogno.
Sinto as cores e nelas descanso, pensando sem controle no passado esgotado.
Minha cara de bobo, pois todos que assim mergulham nos próprios abismos, ficam com cara de bobo
Desmancha-se quando num piscar volto ao real.
Bebo o uísque do copo num só gole e no guardanapo de linho
Rabisco um poema embriagado.

Tela de Irving R. Wiles - 1861/1948 - Pintor Americano.
Terê Oliva
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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

UM BEIJO NO CÉU


Abrir a portinhola da gaiola e esperar 
O passarinho partir na onda do primeiro vento
Livre, espreguiçando as asas
É dar um beijo no céu.

Tela de Victor Nizovtsev (1965) - Pintor Russo Contemporâneo.

Terê Oliva
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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

FEITICEIRA MORENA

Tela de Henry Wallis - 1830/ 1916 - Pintor Inglês.
 A tristeza é uma feiticeira morena que arrasta pelas pernas os quereres inertes, que sem ela, morreriam de vez sem nem perceber.
Pelo menos ela os belisca vez ou outra e tal os mantém vivos, apesar da agonia.
Senta-se à borda da taça da noite e ali permanece
A olhar-me como se esperasse o movimento das minhas mãos a enxotá-la 
Tal qual se faz  com os pombos quando invadem o quintal, em busca das migalhas de pão que voaram da mesa no café da manhã.
Não se vai assim logo 
Porque sua pressa repousa nas asas de um pássaro negro que canta enquanto ela elege seus desígnos.

Esgotaram-se as horas de espera
Horas que  doeram em minhas pernas cansadas, sem onde sentar.
O teto, onde a paisagem se repete intermitentemente, cemitério de navios naufragados
Revela o mar que ondula nas falhas da tinta, sem ondas, sem sal.
Nem as luzes da madrugada riscam um caminho
Trilhas emaranhadas se cortam e entrecortam como cicatrizes do acidente de viver.
Há tão pouco ainda a tentar.
Na argila da minha descrença em tudo, moldo meu espírito e levanto da cama
Tentando esquecer aquela que não sou.



Tela de Jean Beraud - 1849/ 1935 - Pintor Francês

Terê Oliva
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domingo, 13 de outubro de 2013

REMORSO VISCOSO


  Ele tinha pés quentes, mas ninguém fica casada porque o sujeito com quem se dorme tem pés quentes. Apesar do inverno mais rigoroso e do bom sexo, almeja-se algo além dessas miudezas.
 Assim sendo, com os pensamentos girando na cabeça há tanto oca, ela ergue os olhos e o dedo, agitando-o despudoradamente na face daqueles que nada sabem mas deduzem às carreadas.
Nesse tempo de guerra com naus lançadas ao céu e mar, uma mulher ávida se pronuncia na sua nudez prisioneira. Nunca imaginara ela que sua pele possuía tantas filigranas de delícias e sabores.
Sozinha no quarto espesso, onde não está sozinha, está muitas, ao concluir ter vivido em vão, fragmentos das suas lembranças a espetam como adagas.
Heroína do fracasso de seu próprio destino, sem mãos para tecer pontes sobre o abismo de si mesma, aniquila com destreza qualquer chance de cruzá-lo. Ante seu avesso procura o fio do prazer. O prazer do prazer.
Errara. Errara profundo ao abdicar do homem que talvez a pudesse amar.

Bonita em seus longos vestidos de noite trancara-se nos espelhos, e sob a carne guardara a mulher, a outra que era ou poderia ter sido.
A margem oposta de seu sorriso dissipa-se sob a máscara de boa moça, a que é, a que despreza sob os vestígios do batom cor de boca.
O vermelho não apenas a assustou, a aniquilou.
Para continuar a viver nesse remorso viscoso soltou a outra, uma das muitas trancafiadas, a que escreve o há muito guardado e nunca contado.
Essa não tem pudores porque não tem ossos nem sangue, seus músculos  papel, sua identidade grafite.
É tempestade e fogo. Fogo primal, onde as palavras se queimam sem deixar rastros.

Tela de Erik Olson - Pintor Canadense Contemporâneo.

Terê Oliva
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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

FINGIRES



Como na poesia
Nem sei mais se sinto o que finjo sentir
Tampouco enrubesço ante a gargalhada que escapa
Entre meus lábios murchos.
Esse prazer quase irracional de não pensar verdadeiramente em nada
Deixa-me livre da própria vida.
A felicidade da inconsciência é leve
Como a luz indefinida nos olhos de um cão.
Esse torpor não me desvencilha dos fantasmas
Mas me deixa gozar de rosto lavado.

Tela de John White Alexander -1856/1915
Pintor e Ilustrador Americano.

Terê Oliva
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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

BORBOLETA RECÉM-NASCIDA



Em seu ócio requintado, sobre as colunas clássicas que sustenta sua cela
Ela chora rente à loucura.
Não com as lágrimas dóceis dos débeis, mas com uivos de animais feridos.
No silêncio escuro, a mulher parasita em seu tempo
Quando esquece seus versos preferidos, e dos poetas fogem-lhe os nomes.
Quando todas as ideias brilhantes se revelam líquidas.

Quando as pessoas arrogantes, que são inúteis, sentam-se nas cadeiras de vime que sua memória conserva.

O vazio que a circunda não tem asas, mas tem cores e ecos no bater das asas de uma recém-nascida borboleta
Que no cio do ar frio se esmaga contra o vidro da janela mal rompe a manhã.
Um sentimento de naufrágio inunda de vez sua ansiedade pelo dia
Na palidez do futuro que para ela não tem mistérios.


Lynn Ann Sanguedolce - Pintora Americana Contemporânea.
Terê Oliva

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