Ele tinha pés quentes, mas ninguém fica casada porque o sujeito com quem se dorme tem pés quentes. Apesar do inverno mais rigoroso e do bom sexo, almeja-se algo além dessas miudezas. Assim sendo, com os pensamentos girando na cabeça há tanto oca, ela ergue os olhos e o dedo, agitando-o despudoradamente na face daqueles que nada sabem mas deduzem às carreadas. Nesse tempo de guerra com naus lançadas ao céu e mar, uma mulher ávida se pronuncia na sua nudez prisioneira. Nunca imaginara ela que sua pele possuía tantas filigranas de delícias e sabores. Sozinha no quarto espesso, onde não está sozinha, está muitas, ao concluir ter vivido em vão, fragmentos das suas lembranças a espetam como adagas. Heroína do fracasso de seu próprio destino, sem mãos para tecer pontes sobre o abismo de si mesma, aniquila com destreza qualquer chance de cruzá-lo. Ante seu avesso procura o fio do prazer. O prazer do prazer. Errara. Errara profundo ao abdicar do homem que talvez a pudesse amar.
Bonita em seus longos vestidos de noite trancara-se nos espelhos, e sob a carne guardara a mulher, a outra que era ou poderia ter sido.
A margem oposta de seu sorriso dissipa-se sob a máscara de boa moça, a que é, a que despreza sob os vestígios do batom cor de boca.
O vermelho não apenas a assustou, a aniquilou.
Para continuar a viver nesse remorso viscoso soltou a outra, uma das muitas trancafiadas, a que escreve o há muito guardado e nunca contado.
Essa não tem pudores porque não tem ossos nem sangue, seus músculos papel, sua identidade grafite.
É tempestade e fogo. Fogo primal, onde as palavras se queimam sem deixar rastros.
Tela de Erik Olson - Pintor Canadense Contemporâneo.
Terê Oliva
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