quarta-feira, 28 de agosto de 2013

OLHOS ALHEIOS

 Tela de Ulisse Caputo - 1872/1948
Pintor Italiano.


Os olhos me devolvem do espelho os olhos que não são meus
Na verdade são olhos alheios
Meus olhos, olhos alheios.
Não vejo a mulher com cabelos de nimbos e pele de lamparina
Sou a outra que ninguém vê.


Só eu a vejo, com os olhos de dentro
Mas sou possuída pelo espelho

Que me estilhaça em fragmentos sem retoque.

Tela de Evgeniy Kuznetsov - Nasc. 1960
Pintor Abstrato Russo.


Terê Oliva

TORRE DE PARÁGRAFOS


Eu sou a que escreve, a inventada através do grafite e das ideias desmoronadas
Entre altas e tortas torres de parágrafos sem setas 
No terreno improdutivo da minha imaginação.
Não sou aquela que cozinha, que toca o cloro até a vermelhidão das mãos na limpeza dos azulejos
Não sou a que pariu e educou os filhos entre limites de erros e  exasperação
Nem aquela que se veste de mim com saias de condescendência e consentimento.
Sou uma personagem de mim mesma, criada para atrás dela me esconder
Porque se assim não, a mulher que escreve explodiria, e fragmentada
se perderia para sempre.

Meu corpo e minhas memórias dissolvem-se numa consistência de gelatina
Entretanto, a caligrafia dela me compõe e recompõe, e nesse arcabouço de traços e pontos
Ela me sustenta e salva.
"Dansle Bleu" (1894) - Amélie Beaury Saurel - 1849/1924
Pintora Francesa.

Terê Oliva

terça-feira, 20 de agosto de 2013

OS DETALHES DO SILÊNCIO


Nossa ganância caminhava à frente, sem freios, e sorríamos dela no abstrato de nossa juventude

Tanto queríamos, tanto maior que o possível, o real...
Sem nos medirmos, sem percebermos um no outro mais do que a fraca convulsão que nos satisfazia.
Nem quando éramos felizes o éramos, mas isso não sabíamos então
Porque nosso dentro era  fora, e nem a nós mesmos enchíamos com o pouco que restara das andanças de braços dados.
O tempo esgotou-nos e nossa atenção minguava a cada olhar para o interior de nossas próprias janelas.
Nossos desejos não mais valiam a pena ao serem desejados, por raquíticos da desnutição sem cura
A esse nada valer juntou-se as coisas todas, do mínimo ao máximo, do alpha ao omega.
Ante essa descoberta, veio uma tristeza longínqua do alheamento que nos apartava
Horas de tédio, paisagens dissolvidas no éter dos erros, sentimentos esgotados.
Sabíamos, sem a consciência dos fortes, que nossa vida não mais existia além do hábito das formas
Porém mesmo assim a gozávamos, acarinhando a monotonia como a um bicho de estimação, que não se ama mas também não se odeia.

Água e pão para tanto basta.
No exílio espesso em que nos refugiamos, cada qual em seu mar, não construímos navios e nem os desejávamos
Nossa inércia não carecia de bandeiras, a si mesma bastava nas sombras da alcova, onde o pé gelado
Revelava a ilusão do outro, do próprio ser que nada mais era do que um eco distorcido de si mesmo.
De repente, sem mais motivos além da verdade nua e crua, a despedida se consumou entre fotografias rasgadas
Cartas sem sentido e palavras de açoite e álcool.

Logo os ruídos da ausência repercutiam através dos cômodos, como se os cacos de uma xícara caída ao chão
Ricocheteassem o som do inverno pelas paredes de uma causa perdida.
Pouco restou além disso na vida de então.

"L'Homme Endormi" (1861)
Charles Auguste Émile Caroles Duran - 1837/1917
Pintor Francês.

Terê Oliva
http://tereoliva.blogspot.com

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

POBRE DE MARRE DECI


   A velha senhora da tela de Anker, bem poderia ser irmã da minha avó Leonor, portuguesa bonita de olhos tão azuis e transparentes que nem pareciam de verdade. Eram gotas de céu no rosto claro com rugas de indeterminado tempo.
   Culta de muitos livros e Chopin ao piano, também tocava harpa, uma linda harpa que fascinava aos netos que nela não podiam encostar, com risco de ter um chinelo arremessado em sua direção. E que pontaria tinham aquelas frágeis mãos...
   A bela moça, rica de pais prósperos, acabou envelhecendo pobre de marré deci, e por muito pouco, quase nada, não morreu à míngua entre música e velhos livros.
   
               Tela de Albert Samuel Anker - 1831/1910  
                                      Pintor Suíço.

                                      Terê Oliva
                           

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

ACONCHEGO DE LAR


Hoje cedo, ao olhar de manso, percebi a confusa beleza desse canto da minha casa. Nada foi medido. As maçãs esperam seu momento de torta, e o pano de pó aí esquecido, uma hora menos preguiçosa para entrar em ação .
Os livros também pacientemente esperam... Há 900 páginas antes de cada um deles. Os bombons de açaí, presente de aniversário do amigo grego, mofam. Bombom de açaí ? A originalidade muitas vezes conduz ao erro.
Meu velho São Francisquinho descansa no seu lugar de todo sempre, e de tão sereno, passa despercebido através dos anos em que me acompanha. Os gatos idem. Muitos mais havia na minha coleção, mas as crianças da casa trataram com maestria da superpopulação felina, quebrando-os pouco a pouco.

Filha e neta seguem meus movimentos, aprisionadas em porta-retratos. Ao mirá-las, cada vez, sinto uma emoção passageira, se não de amor pela ligeireza do olhar, pelo menos de saudade do tempo ido.
De tudo, sem mais pensar, fica uma sensação reconfortante de lar.

Terê Oliva

http://tereoliva.blogspot.com.br

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

MULHERES CARIOCAS ♀ MARIA DOS GATOS



Tela de Francisco Sanchis Cortés - Nasc.1969
Pintor Espanhol Contemporâneo.



Há tanto era Maria dos Gatos que se lhe chamassem de  Clotilde, nome  que  ao seu Maria arrematava há quase sessenta anos, talvez nem respondesse.
Os gatos lhe batizaram pela vizinhança inteira com seus abandonos e machucados.
Por ser só, ou quase isso, Maria levou o primeiro para casa a lhe fazer companhia, sem imaginar que ele, o Tristão, logo apareceria de barriga cheia com outros tantos. Sorriu, emocionada com a possibilidade da numerosa prole. Tristão virou Isolda num piscar de olhos, sem complicações. Assim mais gostou. Uma menina... Que bom!
Saiu às compras orgulhosa da filhota bonita e voltou carregada de roupinhas , tralhas e apetrechos. Afinal, a nova mamãe carecia de muita coisa para viver com conforto a doce espera dos rebentos.
Maria esperou junto, em plantões de ansiedade. Voltou até a fumar após quinze anos de abstinência total.
Belo dia, seis bichanos chegaram no bico de uma cegonha, que malvada, espetou os olhinhos de um e o cegou.  Tristão, agora macho comprovado pelo veterinário da esquina, passou logo a ser o preferido, da mãe gata e da mãe gente. Com os olhos vazios carecia de cuidados que os outros dispensavam ao crescerem fortes e independentes.
Pelos muros e ruas, as filhas de Isolda descobriram o amor e suas consequências, enchendo a casa de Maria de miados e cios. Tristão, o ceguinho que tanta compaixão despertara no início dessa história, tornou-se quase imediatamente o sultão desse harém familiar. Como não saía de casa por medo do escuro, estava sempre por perto, a satisfazer as necessidades amorosas das bichanas salientes que não se faziam de rogadas aos seus chamegos.
De repente, sem que o tempo se revelasse corrido, a casa de Maria  antes silenciosa e vazia, ficou pequena para seus inumeráveis gatos. Ela, uma solteirona romântica sem mais esperanças de encontrar amante, batizou-os enquanto possível foi, com os célebres dos clássicos: Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, Lancelot e Guinevere ... Depois de esgotada sua cultura e acrescida sua necessidade de nomear a tantos, se tornaram simplesmente Branquinha, Esperto, Molenga, Guloso e tantos outros, devidamente adjetivados com sua característica principal.
Como a felicidade sempre cobra seu preço e tem o seu reverso, Maria logo viu-se num mar de problemas para os quais, cercada por dezenas de gatos, não atinava solução. A verba da ração, que não era pública nem superfaturada, escoava de seus bolsos numa honestidade de arrancar cabelos. Os vizinhos reclamavam do cheiro e do barulho, abaixo-assinado, Saúde Pública, super-população, o sumiço da faxineira e tanto mais, tanto mais.
Ela acarinhava seus gatos com o desalento da despedida próxima, apesar de viver sem eles não saber como. A rala família que restara, tia-avó e alguns primos de graus perdidos, se preocupou e se meteu, como toda família de verdade faz quando a coisa fica preta, mas pouco adiantou os trocados coletados e o nome do psiquiatra indicado.
Meio maluca de solidão e saudade pressentida, trancou portas, janelas, e jogou álcool sobre tudo e todos na casa dentro, inclusive na própria cabeça que, refém das tragédias dos livros, incendiou sua história com um glorioso final.
Tela de Antonio Guzman Capel - Nasc.1960
Pintor Espanhol Contemporâneo.


Terê Oliva