domingo, 29 de abril de 2012

TRAMAS

Tela de Charles Webster Hawthorne - (1872/1930)
Pintor Americano.

A dolência no peito que não passa
Não dói à toa
Como não é à toa que o amor
Desmancha a trama.

Puxa o fio seu fantasma herético
Argonauta dos mares da solidão
Sem desejos, pois não mais ardem

Por cansaço do ato gasto.

O sangue no chão da alma exposta
As noites de espera, soprada a chama
Pelo olhar de escárnio na face de sal.

Os nós se desfizeram em fiapos
Fiapos sem mãos que de novo teçam

O amor em minúcias puído.

Franz Xaver Simm - (1853/1918)
Pintor Austríaco.
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Teresinha Oliveira.

MELHORES♥AMIGOS

Meus amigos melhores
Nos quais arrisco prazer
 Um beija-flor e uma borboleta amarela
Toda manhã aparecem na hora marcada
-Natureza a contar minutos-
Para mim que os espero
Respondendo bom-dia
Antes do dia real começar.
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Tela de Cândido Portinari - (1903/1962)
Pintor Brasileiro.

Teresinha Oliveira.


sábado, 28 de abril de 2012

AMORES DESPETALADOS.

Oscar amava Helena que amava Fernando que amava Simão.

Simão amava Lia que amava Mário que amava Yolanda.

Yolanda amava Francisco que amava Ana que amava Felício.

Felício amava Maria que amava José que amava Rosa

Rosa amava Carlos que amava Elisa que amava  Antonio

Antonio amava Irene que amava Marcos que amava Teresa.

Teresa amava Paulo que amava Rita que amava Bento.

Bento amava Regina que amava Gabriel que amava Nadir.

Nadir também amava o mesmo Paulo que Teresa, que não amava nem uma nem outra.

Teresa, flor miúda e sem perfume, mas esperta como ela só
Ao se ver nesse jardim de confusão
Deu os braços para Zenóbio que até então não era amor de ninguém

E saiu a passear por aí.

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Letras Floridas de Catherine Klein - (1861/1929)
Pintora Prussiana.

Teresinha Oliveira.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

CISCOS DE CRISTAL.

Que ser mais sem sentido sou eu, hesitante criaturinha
Perdida nas luzes da própria sina que traço sem talento.
Que tanto, vez em quando, penso ser; e nada sou
De concreto nesta vida tão curta que se esgota
Mais rápido do que consigo, de mim mesma
Fazer algo que valha por aqui ser recordado,

Mais rápido do que seca minha lágrima vã.

Tanto tenho cá por dentro... Isso sei.
Poucos sabem e para ninguém conto, dona de aziagas cismas.
Ou isso só julgo e imagino porque faz bem
Para a alma capenga que dispensa muletas por atrapalhar o passo
E retardar o voo pelos veludos do sonho.
Porém, na crua realidade, não a que suponho existir no erro de viver
Não sou, nem ultrapasso o além do humano blefe de Deus.

Mulher comum, prepotente que ao mirar os ciscos de cristal
Por ser nada, ou pouco mais apenas, ali me vejo nua e fosca.
A imagem não acalma, entretanto, a arritmia do destino em fogo
Que me consome sem que o possa explicar.

A vida transborda em dádivas, em dogmas e neuroses quase loucas
Em ânsias de mais viver, em sexo devastador, em sofismas de amor
Em gargalhada final diante do embuste do espelho.
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Tela de William N. Montague Orpen - (1878/1931)

Pintor Irlandês.


Teresinha Oliveira.

terça-feira, 24 de abril de 2012

ÚLTIMO VERÃO

O sol girou sobre si mesmo e enredou-se em um nó cego
Um nó que nem a própria luz desatou.
Ao perder a hora da partida ali ficou
Incólume à noite.

Aqueceu a resina das árvores que adoçou o ar
Atraiu insetos e pássaros, abriu flor em hora errada
Trouxe barulho d'água solta para perto
Recriou o bosque numa onírica lembrança.

Os raios desse sol sem órbita 

Sombrearam labirintos no teu rosto amado.
Teu rosto, meu último verão.
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Stanislav Sugintas - (1969)
Pintor Lituano Contemporâneo.

Terê Oliva


GELEIRAS

O salto de geleira a geleira, uma perto outra além, amolece os joelhos
Dói nas articulações e entedia a mulher 
Entre as sombras do seu frio mormaço
 Na queda ao rés do chão.
Filha rejeitada das estrelas dos leões e dragões
 Que nelas vive, e nelas, é ela mesma e quase feliz
Num paradoxal arquétipo de feroz mansidão.

As bordas da vida chamuscam sua pele
Ferem seus desejos de utopia pichados 
Por todos em seus céus cercania.

Repousa assim, na fria névoa que dissipa o tempo
O ser feminino que no adágio de um sábio
Será resgatado por quem ousar e tiver pernas para alturas.
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Tela de Witold Pruszkowski - (1846/1896)
Pintor Polonês.

Teresinha Oliveira.



domingo, 22 de abril de 2012

DIA DO BEIJO II

James Jabusa Shannon - (1862/1923)
Pintor Americano.
O Beijo se comemora. 
O dia da festa, sem que ninguém ansiasse ou nele pensasse, chegou.

Miklos Barabas - (1810/1898)
Pintor Húngaro.


O Beijo ganhou um círculo vermelho no calendário sem se saber o porquê. 
Dia esdrúxulo, que um sujeito sem mais de útil a fazer, escolheu
No céu da boca
De mulher amante ou moça namorada. 

Edward Frederick Brewtnall - (1846/1902)
Pintor Britânico.


O Beijo decisivo
Do poeta, ou do político, ou do carinhoso compulsivo 
Escolheu um dia inteiro só para si. 
Daqui a pouco vira até feriado...
Entretanto ninguém viu, ao menos prestou atenção, na assinatura ilegível sob a romântica invencionice.

Francesco Hayez - (1791/1882)
Pintor Italiano.



O Beijo é caminho, logo depois da esquina do olhar.
Degustação de um amor que poderá vir a ser. 
Muitos lábios se perdem, ao passearem lépidos sem rumo 
Seguindo setas de emoções rasas.

Pietro Antonio Rotari - (1706/1762)
Pintor Italiano.


O beijo dos dóceis sonhadores, na deserção do desejo se oculta.
Na timidez se guarda, apesar de sedento.


Não os furtem daqueles que os anseiam e deles são dignos.
Daqueles que passam noites no claro da lua a imaginar 
O sabor da saliva e a textura dos lábios desse amor fugidio.


Walter Dendy Sadler - (1854/1923)
Pintor Inglês.


O beijo rejeitado calcifica. 
Torna-se sal de desdém que por anos azeda a boca 
Com o gosto do beijo sem uso.

O outro, que dele se esquivou, por já sabê-lo sem gozo ou motivo
Não encontra argumento que destrua a lógica louca do beijo insistente. 
Não ser amado é incompreensível, não ser beijado grave injúria.
John Everett Millais - (1829/1896)
Pintor Inglês.



O Beijo veste sua roupagem de gala nos grandes momentos.
Permanece inesquecível no cetim, no laço de fita que o prende
 Mesmo quando não passa de um frescor no quase.


Georgy Kurasov - (1958)
Pintor Russo Contemporâneo.


O Beijo pode ser traiçoeiro.
Serpentes e tesouras
 Armaram alçapões através dos séculos da humanidade.
Marias e Josés exibem sua marca na face
Sem aprender a lição.

Pio Ricci - (1850/1919)
Pintor Italiano.



O Beijo guardado a sete chaves
No amor que se esconde em areias movediças
Sofre as penas no seu gueto, sem tentar.


Nada se conclui ante o pânico da rejeição.
 Os beijos desperdiçados
 Com suas pegadas de arrependimento frio
Perseguirão o covarde pelas bocas fáceis
Com a memória da outra.

Michael Parkes - (1944)
Pintor Americano nascido na Espanha.
Contemporâneo.


O Beijo é pássaro de asas longas
 Que dá rasantes  no alvo para conhecer seu destino. 
Algumas vezes faz ninho.
Outras, se vai e nunca mais volta
Para o cio de plumas com o qual não comungou.
Alada fuga sem rastro, azeda saliva.


Nathan Brutsky - (1963)
Pintor Ucraniano Contemporâneo.



O beijo pedinte e maltrapilho 
Que sobe no carrossel das ofertas vazias
Por pouco não vira bocejo
Nas bocas contempladas. 


Ferdinand Waldmüller - (1793/1865)
Pintor Austríaco.


O beijo, talvez o definitivo, o que rende flor e fruto 
É aquele que se promete 
O que se guarda atrás de um sorriso de dúvida. 
Quando se dá, não satisfaz
Não um, nem dois, nem mil.
Por ter sabor agridoce de futuro
É melhor do que jamais se imaginou.

Teresinha Oliveira.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

MISTÉRIOS DA BIBLIOTECA

Os mistérios velados das bibliotecas
Vagam frente a olhos de muitas vigílias.

Olhos que gastam graus e buscam no silêncio rígido
Só interrompido pelo rascante som de uma página virada
Cochichos e tosses mínimas
As almas dos que ali vivem.
Escritores e personagens, encerrados através dos séculos no papel.

Deles sugar, leitor sem maiores dons
O arcabouço da sabedoria.
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Tela de Carl Spitzweg - (1808/1885)
Pintor e Poeta Alemão.

Terê Oliva

segunda-feira, 16 de abril de 2012

SOLO DE SAXOFONE ♫

O solo do saxofone é um navio sem rota
Sem bússola que indique o norte
Na música de paixões primitivas.
Gentis notas dançam uma poesia negra
Que sem outro motivo a não ser o gume agudo
Seria doce ouvir.

Aquietam-se as horas escuras na casamata
Com cheiro de erva-doce e grama cortada
Da sala grande e vazia.
No abrir de asas de um bocejo largo
O copo de conhaque cai ao chão e rompe
O fecho do camafeu com rubis que sangram
No peito da mulher ávida
Que não chora em lágrimas, mas dissolve em som.
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Tela de Nathan Brutsky - (1963)
Pintor Ucraniano Contemporâneo.

Teresinha Oliveira.


domingo, 15 de abril de 2012

INDECIFRÁVEL ENIGMA.


Se um sábio, do tecido do amor
Um fiapo desfiou e entendeu
Dele não soube contar
Nem em versos
ou
Complexa filosofia.

Tela de Georgy Kurasov - (1958)
Pintor Russo Contemporâneo.

Teresinha Oliveira.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

PEGADAS NOS LENÇÓIS

Ébrio de uísque e conceitos da vida falou
Como sábio filósofo grego, sobre a pedra da solidão
Fadado a um silogismo de três erros.

Plantou flor trepadeira de espinhos

 Nos muros baixos que o cercavam
Entre rachaduras amou, sem promessa, sem ternura.

Com suas guerrilhas o amor transpassou:
O salário ralo que ao trabalho não paga
Não dá para o pão, o teto e o depois.

O vermelho do sinal, do sangue, o apito do guarda, o pé engessado
A oração inútil na fé perdida por um Deus imóvel
As misérias do mundo, os políticos corruptos.


As crianças sem chance, as crianças da guerra, as crianças da fome

Os amantes assassinos e suicidas em seu querer de formol
As mãos, as hárpias, o Papa, a primeira página do jornal.


Fincou pé ante a tolice de amar, pulsar fina réstia de paixão
Se negou aos beijos nas línguas
Ao toque na face de barba mal feita, arranhões da libido quente.



Deixou pegadas para o longe nos lençóis  
Sujos de sêmen pelo chão
 Lençóis do armário das extraviadas décadas.


Nem poesia bonita se fez
Com a verdade roubada do cofre de segredos
Onde só um sorriso, estampado de riso restou.
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Tela de Adriaen Brouwer - (1605/1638)
Pintor Holandês.



Terê Oliva

terça-feira, 10 de abril de 2012

CHAVES SOB O CAPACHO.

Desligo as luzes.
Giro a chave e escondo sob o capacho
Bem-Vindo pelos pés sujos quase extinto.
Quem sabe um dia volto...
Quem sabe não.

Com pressa, agitada pelo futuro das horas
Ao buscar ou fugir.
Correndo para mim, esquivando-me de ti
Desço ladeiras, queimo ruas e esquinas
Não vejo o que olho nem sinto o que rasga.

Inflo os pulmões negros, verifico a carga:
Livros, cigarros, o casaco de couro ante o frio que me persegue.
Louca maratona de uma louca mulher já sem flama
Sem outros pés a não ser estes.
Céleres passos para um onde possível, com cama e pão.



Nos riscos tortos da minha mão trêmula
-Pó de grafite que borra mas não liberta-
Procuro alguma saída do labirinto que tracei

Com amor e razão vesga.
Quem sabe um dia escapo... Quem sabe não.



Tela de Sergei Potiha - (1966)
Pintor Ucraniano Contemporâneo.



Teresinha Oliveira.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

IMPOSSÍVEL PAIXÃO

o amor que se desfez antes de chegar à cama.
Lembrança forte como ressaca de mar sem barreira
Nossas vagas se chocavam nas rochas e as lambiam
Sem espargir sal ou fazer ruído com medos
Do observador indiscreto que pudesse, num instante fortuito
Perceber nosso inevitável movimento.

As memórias se refizeram e cada detalhe nosso
Abriam cortinas há muito cerradas pelas cordas da impossibilidade
Do nosso querer proibido pelas leis dos homens e dos céus.
Velhos papiros, onde sua promessa permanecia firme
Assinatura legível sob o aval de Deus.

Apesar do veto meu amor não se conteve.
Se não escolheu o vestido e calçou saltos altos
Para sair bailando pelo salão repleto para seus braços
Não foi por raquítica vontade ou dor nos tendões.

O furacão no horizonte esvaiu meu amor incorreto
Como a razão paralisou seus braços antes de me enlaçarem a cintura.
Conscientes amantes de um desejo impossível.

Tudo aquilo que não era, sempre havia sido
Escondido atrás do beijo que rompeu nossos diques
Mas manteve ao longe nosso desatino.

Obra de Andreas Preis 
Ilustrador Alemão.


Teresinha Oliveira




quarta-feira, 4 de abril de 2012

BACALHAU & SIRI & CAMARÃO.

Kunz Meyer Waldeck - (1859/1953)
Pintor Alemão.


Já muito perguntei. Tantos explicaram mas não me convenceram.
Por que não se pode saborear um suculento bife de picanha na Semana Santa? Por que vejo-me obrigada a servir o mar em minha mesa?
Camarão pode? -'Pode'. Bacalhau pode? -'Ora, claro que pode, sua apedeuta. Bacalhau é peixe'. É mesmo... E siri? -'Acho que pode, é carne branca'. Se a questão é cor, então frango também pode. 'Aí já não sei'...
Entretanto, comer frango anêmico no feriado, com a família toda reunida, vai além da paciência de qualquer cristão. Frango é refeição de todo dia, de segunda à sexta se bobear, porque é barato, rápido e fácil de cozinhar e o povaréu aprecia.
Não eu, que logo imagino uma galinha de asas abertas correndo do facão pelo quintal.
Vaca não é assim. É bicho bobo que vive comendo grama verdinha e te olha com o olhar amoroso de quem sabe seu destino e dele não reclama.
Peixe nem mostra sentimento. Morre rápido e vai para a frigideira sem culpas  do cozinheiro. 
Siri é outra história. Dá mesmo pena jogar os bichos vivos na água fervente e vê-los se debatendo no caldeirão. Porém, como nada sei do sistema nervoso dos siris, peixes e mexilhões, prefiro pensar que eles não sentem dor para assim comê-los com a consciência tranquila.
Mas a questão do texto não é essa, é outra e mais séria, embora não escape da cozinha.
Nenhuma filosofia mais lógica existe, capaz de ordenar essa humanidade capenga, cega e louca que criamos, do que o Cristianismo. 
Tradições não o fortalecerão, muito menos a obediência a elas revelará a fé daqueles que as cumprem.
Tela de Charles Spencelayh  - (1865/1958)
Pintor Inglês.



Teresinha Oliveira.

terça-feira, 3 de abril de 2012

AMOR: BICHO SEM DOMÍNIO.

Daniel Hernandez - (1856/1932)
Pintor Peruano.
Henri Gillard Glindoni - (1852/1913)
Pintor Inglês.

Vlado Bukovac - (04/07/1855 - 23/04/1922)
Pintor Croata.

Wladislaw Bakalowicz - (1833/1903)
Pintor Polonês.

Felix Friedrich Von Ende - (1856/1918)
Pintor Alemão.

Wojciech Gerson - (1831/1901)
Pintor Polonês.

Witold Pruszkowski - (1846/1896)
Pintor Polonês.

Tito Conti - ( 1842/1924)
Pintor Italiano.

William Powell Frith - (19/01/1819 - 09/11/1909)
Pintor Inglês.

William Strang - ( 03/02/1859 - 12/04/1921)
Pintor Escocês.

Vittorio Matteo Corcos - (04/10/1859 - 08/11/1933)
Pintor Italiano.

Federico Andreotti - (1847/1930)
Pintor Italiano.


Escrever sobre o amor é tempo perdido; é gastar palavra e tinta para não dizer nada, nada explicar.  Muito menos leva a compreender o próprio pensamento que nessa tentativa se embaralha e murcha.
Amor é bicho sem domínio, e vamos deixar como está.


Teresinha Oliveira.



LABAREDAS NO CIRCO

Não gosto dos circos, desde criança parei de gostar.
Muito medo conservo até hoje ao ver a frágil estrutura que montam para apresentar o grande, sempre é grande, espetáculo.
Se há, e inegavelmente há, poesia e fantasia no rés do chão, nas cores, luzes, palhaços, equilibristas e artistas outros, também persiste a preocupante insegurança a que se expõe o respeitável público.
Isso tudo conto, pelas memórias que carrego do grande incêndio no circo em Niterói, no ano em que não lembro já que minha memória para datas se restringe a poucos aniversários. Foi na década dos 60, disso tenho certeza.
Menina, escapei por pouco, por sorte, destino ou dádiva divina. 
Por um triz me safei.
 Já com os ingressos comprados na carteira de meu pai, desistiu o velho de nos levar ao perceber a febrícula que esquentava meu irmão caçula.
Creio que nunca odiei tanto a outro ser humano, aos dois na verdade. Pai e filho. Chorei, bati pé, fiz promessa de muito estudar, até aprendi a ver a coluna de mercúrio no termômetro que a cada 5 minutos colocava sob o braço magrelo do Filipe, mas qual... Nem a febre cedia, nem meu pai mudava de ideia, nem eu parava de chorar.
Com olhar triste, como cachorro sem dono, vi meus colegas de escola passarem alegremente sob a janela do meu apartamento em Icaraí, a gritar meu nome:
- " Tere, Tere, já estamos indo para o Circo. Você não vai?" 
- "Meu pai não deixou. Meu irmão está com febre."
Que  #+/@*&amp# ! O palavrão acredito estar inventando, porque naquele tempo não o dizíamos, não assim abertamente numa janela alta para quem quisesse ouvir, pois era tapa na certa. Tapa, mesmo mais simbólico do que real, doía e lembrava sempre do que nos era proibido.
Algum tempo depois, uma hora ou duas, a desgraça tomou conta da cidade, do bairro, da rua. 
O Circo pegou fogo! O Circo pegou fogo!
Pessoas passavam correndo, num vai e vem histérico, aos berros.
O Circo pegou fogo! O Circo pegou fogo!
Do centro da cidade, os raios das labaredas atingiram a todos.
Lençóis...Precisamos de lençóis, colchonetes, travesseiros!
Gelo... Façam gelo. Mais gelo! Mais gelo! Mais Gelo!
Os carros não paravam de circular com pessoas pedindo doações.
Do gelo nunca esqueci, até porque não entendia sua necessidade tão fremente. O rosto da moça que o recolheu no edifício inteiro ainda conservo na memória. -"Faz mais, faz mais"! Como se nossa geladeira disso fosse capaz nesse tempo urgente.
O telefone começou a tocar sem parar ..."Pergunta a Tere se ela viu a Verinha"... Não, não viu. Não! Nós não fomos ao Circo... O Renato?... Também não viu.
Vi sim. Renato foi um dos que passou sob minha janela me chamando. Meu namorado. Aquele namorado que eu sempre nomeava quando alguma velhinha chata perguntava: -"Tão bonita...Já tem namorado?" Já. O Renato.
Hoje, sou eu a velhinha chata que a mesma pergunta faz às meninas.
Renato nunca mais vi. Morreu. Chorei muito pelo meu primeiro amor. Uns disseram que queimado, outros que pisoteado pelo elefante que escapou enlouquecido e a muitos matou, mas a tantos outros salvou ao romper um pedaço da lona por onde fugiram do inferno.
Histórias e mais histórias. Boatos. Dramas reais nas carteiras vazias da escola. Na ausência dos homenageados no Dia dos Pais e das Mães. Nas enrugadas cicatrizes dos colegas para as quais as professoras pediam silêncio e logo explicavam. "Psiu...foi no circo."
Nós, crianças, respeitávamos a simples menção à palavra circo, como se seus sobreviventes fossem os nossos heróis. Nada lhes era perguntado, embora a curiosidade roesse nossa infância. 
É verdade que os grandes animais que fugiram, inclusive tigres e leões, atacaram as pessoas? O domador morreu mesmo ao tentar contê-los? Onde você estava sentado quando a lona em chamas caiu sobre o picadeiro? E o elefante?
O Circo, do qual numa rasante da sorte escapamos, eu e minha família, se tornou para mim um símbolo paradoxal de tristeza e benção.




Tela de Liana Moiseeva
Pintora Russa Contemporânea.


Teresinha Oliveira
Terê Oliva

segunda-feira, 2 de abril de 2012

DESEJO GASTO

Rouba um beijo, ó desconhecido passante
Que com seus músculos me eleva
Às escarpas de um desejo gasto
Se não de todo, pelo menos assim quase.

Tela de Andrius Kovelinas
Pintor Lituano Contemporâneo.

Terê Oliva