terça-feira, 17 de abril de 2018

O ÚLTIMO COMPRIMIDO



Eleições chegando e os filhos de uma amiga, rapagões que nada mais fazem na vida além de quase estudar, decidem engrossar a mesada com alguns trocados. Nada mais justo e louvável.
Logo o pai, que com assuntos políticos sempre esteve envolvido, conectou um colega de trabalho que buscava jovens para distribuir seus 'santinhos'. 
O sonho de ser vereador não lhe poupava despesas. No retângulo de papel  figurava seu rosto, nome e número. A sigla do partido permanecia oculta, isso evitava perguntas constrangedoras.
Convencer os eleitores, milhões de cariocas depauperados, que era o mais indicado para ocupar o cargo não era difícil, bastava prometer com dedos cruzados, saúde, educação e segurança. Sua boa aparência e baba demagógica fariam o resto. Se houvesse sobra da verba de campanha, pensava em transformá-la em feijão dos pobres do morro vizinho à casa da sogra, talvez até em alguns brinquedos da Rua da Alfândega para as criancinhas. Um novo papai noel do subúrbio. 
Quando o colega ligou perguntando se havia vaga para os filhos não petanejou. 
Contratou os guris a preço de banana e indicou o local da propaganda enganosa. Os irmãos, felizes com o dinheiro extra por um trabalho tão fácil, saíram de manhãzinha com a pressa do entusiasmo e o café mal tomado.
Saíram e não voltaram. Três horas, quatro, cinco... Cadê esses moleques?
O pai, responsável sentindo-se pelo que pudesse ter acontecido, ligava sem parar. Como jovem não atende celular quando não interessa, mais preocupado ficava a cada minuto de silêncio. Será que haviam sido assaltados e perdido os mesmos?
Nesse estado de angústia pegou o carro e partiu para Vila Isabel atrás da dupla. A mãe, não menos confusa, de carona foi junto. 
Lá chegando, cisca daqui, cisca dali, entrou numa comunidade por engano. Quando tentou voltar aos caminhos conhecidos, teve o carro interceptado por um bandido armado com fuzil que se postou bem no meio da rua impedindo a passagem. 
Olhando de forma intimidadora para o pai, que tremia mais que vara verde, ordenou : 'Dá ré' ! 
O pai: - 'Calma, vou explicar para o Senhor' ...
- 'Dá ré' !!! Repete o dono do fuzil mais alto e irritadiço.
O Senhor bandido não quis conversa.
Sem opção outra a não ser obedecer, o pai engata marcha à ré e novamente entra na comunidade. A mãe ante os acontecimentos, sabe-se lá por que razão imagina o fim, queimada num 'forno microondas' no alto do morro, e só não deságua em lágrimas por medo de mais aborrecer o marginal.
Nesse estado de coisas o pai começa a decisiva negociação, questão de vida ou morte- "O Senhor me desculpe, entrei na rua errada." - "Vim buscar meus filhos, blá-blá-blá..."
Após alguns minutos onde o casal viu a própria vida pipocar em flashes de trás para frente, de frente para trás, receberam nova ordem - "Vãobora" !
Ao chegarem na avenida principal do bairro logo encontraram os garotos, tomando sorvete tranquilamente numa lanchonete de esquina. Os panfletos ainda transbordavam das mochilas. Não tiveram forças nem para brigar.
O pai, corado e respirando com dificuldade, vira-se para a mulher e pede :- "Dê-me um dos seus comprimidos para pressão, acho que a minha subiu."
- "Meu querido, acabei de tomar o último." 

Tela de Candido Portinari - 1903/1962 - Pintor Brasileiro (São Paulo)

Terê Oliva
http://tereoliva.blogspot.com.br

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