quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O CAOS DAS LEMBRANÇAS RASGADAS

Mãos doloridas de tanto rasgar papel. 
Não consegui me esquivar da tarefa, nem outra solução se apresentou mais razoável do que simplesmente rasgar as agendas que vou guardando ano após ano, como se fossem diários, que não revelam emoções mas a praticidade da vida.
   Foram para o lixo em pequenos pedaços de lembrança os aniversários, as consultas médicas, o telefone do rapaz simpático que tornava a piscina azul como céu, e mais tantos: da doceira que assava e confeitava bonito como ela só os bolos de toda festa que por aqui se fazia, da faxineira que mais faltava do que vinha, da amiga que foi para tão longe que desapareceu nas águas do Pacífico, do companheiro querido, muito querido, das batalhas perdidas contra o cigarro que com o namorado mudou-se para Nova York e  não deu mais  notícias, de gente que já morreu. 
  Gente velha, gente jovem que deixou o sorriso grudado no papel e partiu para os campos onde o carteiro não chega para entregar minha saudade.
   Os filmes se foram nos dias anotados do cinema à tarde. Também as peças de teatro, os almoços na casa de quem e com quem, as listas do mercado, o saldo assustador da conta bancária, as missões inadiáveis, as tarefas não cumpridas.
  Entre meus dedos dormentes escorregam para o saco preto as alegrias dos casamentos, dos preparativos para a igreja, a festa, os vestidos, flores, música, convites...
  Tristezas também são revividas, como o endereço do hospital onde meu pai esgota seus dias, os títulos e escritores dos livros velhos comprados quase de graça nas bancas de jornal da Tijuca, a serem lidos na enfermaria enquanto a esperança mingua.
Porém no correr de páginas que a vida impõe, boas-novas chegam voando e cegonhas espalham suas penas na espera dos meses seguintes. Nasceu linda e gorducha, olhos verdes como a mãe.
 Anotações e bichinhos desenhados nos cantos possíveis. Mania boba, mas cada qual elege a sua; nada de retas ou rabiscos, bichinhos... Assim coelhinhos, peixinhos e todo um zoológico  no diminutivo visitam o papel.
Continuo rasgando e me distancio em outro tempo.
Namorado, ou quase isso. Sem a agenda, permaneceria esquecido.
Mais uma, mais um ano, mais gente, mais farpas, mais poesia, mais lembranças...
  Pensei comprar uma agenda eletrônica, mas nela seria impossível guardar a vida.




Ilustração de Bradshaw Crandell - (1896/1966)
Ilustrador Americano.


Terê Oliva

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