terça-feira, 22 de maio de 2012

AS FADAS DO SEU RENATO.

Seu Renato morreu.
Morreu sozinho, sem diagnóstico. Apagou como um palito de fósforo que consome a chama em si mesmo durante a existência de luz. 
Diziam as vizinhas fofoqueiras que era doutor, doutor em quê nunca descobri. Como curiosidade não faz parte de mim, os anos passaram e nunca perguntei.
Esse título vazio, nos bons-dias e tardes passava ao largo dos nossos sorrisos e sincero desejar.
Era um velho bonito. Peguei-me muitas vezes observando cada detalhe da sua figura gasta, e no gracejo do seu olhar eu, encabulada, percebia que ele o sabia, talvez gostasse .
Morava na pequena casa da esquina, tão linda de flores que até parecia um cartão postal europeu. Ele as regava todas as manhãs; limpava os canteiros, varria o quintal, acarinhava as árvores. Curvado e alegre isso tudo fazia enquanto falava sozinho. Era então o que eu pensava dessa conversação anciã.
Amava passarinhos e lhes imitava o canto. Certa vez, ao lado do pé de vaca  cor-de-rosa que eu plantara na calçada, entre comovais e tudobens, revelou seu talento e, igual a moleque peladeiro fazendo embaixadas com bola de meias, começou a se exibir assobiando canários, sanhaços,curiós.   
Como desses pios sou alheia, pouca diferença percebi. Bem-te-vi era fácil, porque a avezinha cantava o próprio nome: Bem-te-vi, bem-te-vi...
Ele, comprido como a vida e fino como agulha de tricotar, espalhava bom-humor em cada palavra dita. Em alguma primavera especialmente florida elogiei seu jardim; e ele, com seu olhar enrugado de mansidão disse-me: 
- As flores se coloriram com tamanho esmero para receber a visita das novas fadas. Até os arbustos estão felizes com a chegadas delas.
-Fadas? Que fadas?
-Nunca lhe contei? Pensei já haver contado. As fadas sempre aparecem nessa época do ano para trocarem seus vestidos, que se rasgam depois de tantos meses voando através dos sonhos.
-Fadas? No seu jardim?
-Sim. Elas fazem seus vestidos com as pétalas das flores. Algumas mais caprichosas até os bordam com grãos de pólen ou finíssimos fiapos de grama. Dá até prazer de ver.
-O senhor vê essas fadinhas costureiras?
-Claro, D.Teresa. Até converso com elas, mas elas pouco falam; piscam um meio olhar e continuam escolhendo cores e flores preferidas.
Elas não tem tempo a perder. Assim que estão prontas, lindas em suas vestes esvoaçantes, partem quase invisíveis pelos céus das cabeças de todos nós, carregando os desejos que nelas recolheu em suas pequeninas mãos.
Nesse momento, analisei a caduquice do meu amigo. Não somente as fadas o visitavam, Alzheimer também devia estar por perto, sentado na poltrona da sala, bebendo chá com biscoitos. 
-Cada sonho de futuro, cada saudade, cada lembrança boa, cada carta que não escrevemos, cada recado de ternura... Tudo isso entregam ao destinatário escolhido. Eu mesmo já pedi que levassem um bilhetinho meu ao filho que nunca tive.
-Eu, Seu Renato, gostaria de mandar um pedido de desculpas ao filhotinho de gato preto que abandonei na praça. Pode parecer bobagem, mas é uma culpa que carrego. Culpa boba, reconheço, mas culpa é culpa, independente do tamanho do gato.
-Se a senhora pedir, elas entregam.
-O senhor só vê fadas, Seu Renato? E anjos?
-Ora, a senhora pensa que estou maluco? Os anjos vivem nas igrejas, não nos jardins. 
Eles são sérios, alguns até carrancudos, não falam com as pessoas. Uma vez, alguns pequeninos até me agitaram as asinhas quando fui à missa de domingo na Catedral, mas logo voaram.
Temendo que meu doce vizinho me convidasse para conhecer as fadas do seu jardim, despedi-me com um até amanhã que não houve. Elas o levaram antes, para seu mundo mágico, vestidas com as flores do seu jardim.
Algumas semanas depois, varrendo minha calçada, olhei para a casa fechada do Seu Renato. Apoiada no cabo da vassoura fiquei ali, pensando na beleza de sua vida solitária, na alegria simples que ele colhia de seu jardim.
Quando despertei desse devaneio, corri para casa com medo de enxergar uma nuvenzinha de fadas sobrevoando, tristonhas, o jardim agora abandonado. 
Daqui a pouco, sou eu quem encontra o Alzheimer para um cafezinho...


Tela de Harry Herman Roseland - (1867/1950)
Pintor Americano.


Terê Oliva.  






   









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