Saiu Maria das Dores com mais dores no corpo que no nome bem cedinho de casa, de um longínquo subúrbio da Central. Nenhum galo ainda cantara. Devia ser madrugada, mas desde que Joca havia estilhaçado o relógio na parede com raivas dela a reclamar salário, não mais tivera certeza das horas. Só controlava o horário pelas novelas da televisão.
Quase desistiu ao passar na frente da casa de D.Deolinda, portuguesa prestativa que sempre cheirava a talco e carregava um sorriso solidário. Nesse momento de dor atravessada, que começava na perna e corria cruel pela barriga até o peito e retornava pelo mesmo caminho, ela não lhe negaria um comprimido. Mas ficou sem graça de chamar ou bater palmas. Birosca, o vira-lata com três patas que dormia na varandinha tímida, olhou-a de soslaio e indiferente, voltou para seus sonhos .
Seguiu seu caminho sem comprimido mesmo, e sem luz. Daqui a pouquinho o dia clareia, pensou ao capengar pelas vielas nas quais correra lépida quando menina.
Pegou o trem e partiu sacolejante no seu ritmo. Apalpou mais uma vez o bolso da blusa e conferiu o volume das moedas que lá guardara para o retorno. Ainda bem que nessas horas os lugares vagos eram muitos, e desfrutando o luxo de sentar-se à janela, aproveitou a paisagem.
Ao chegar no centro da cidade o sol já nascera com suas quenturas, verão carioca com graus às dezenas.
Sem tempo ou passos a perder, dirigiu-se logo ao hospital costumeiro; nem perto nem longe, tanto que logo chegou. Porém, estancou antes mesmo das grandes portas, pois uma aglomeração fora do comum denunciava encrenca.
Filas de toda gente, crianças choronas com nariz escorrendo e vermelhidão de febre, velhos estrompados, pernas e braços engessados. Uma mulher gorda demonstrava sua ira com palavrões cabeludos, enquanto a magrela que a acompanhava pedia calma e citava as Escrituras. Deus é fiel e ampara os pobres!
Faixas corriam das portas às árvores na frente do velho prédio, onde garranchos vulgares pareciam explicar o caos, mas pouco explicavam à Das Dores, que além de escrever seu nome, nada conhecia dessas coisas de letras e palavras.
Esperta, foi logo perguntar a quem parecia de tudo saber, o segurança que barrava a passagem de qualquer um, com seu jeito prepotente de autoridade na calçada entupida de brasileiros sem sorte e governo.
Ele, com um quê de desprezo na voz, quase gritava para não deixar dúvidas: - Greve! Não vão atender ninguém! Só emergência.
-Mas Seu Guarda, arriscou Das Dores, que nessa hora derretia sob o calor e sentia as travessias das dores recrudescerem: - Eu vim de tão longe, não tenho nem o dinheiro da passagem pra voltar outro dia. Estou com muita dor que passa da per......e relataria suas mazelas ao sujeito, se não fosse por ele bruscamente interrompida.
-Sinto muito dona, mas só atendemos, (e aí ele se incorporou ao quadro clínico), emergências.
Desanimada, Das Dores anteviu todo o sofrimento que a aguardava. A volta para casa, a falta do diagnóstico -embora ela nem soubesse disso como isso- o sol, as moedas, o trem ,o comprimido da D.Deolinda...
Afastou-se do ajuntamento em passos titubeantes, e com a justificativa dos desesperados, estrebuchou dramaticamente até cair desfalecida em braços milimetricamente escolhidos.
Virou caso de urgência!
Teresinha Oliveira.
Um comentário:
ahahahahah
Final surpreendente. Mazela social transformada em arte. Invista nas crônicas!
Postar um comentário