quarta-feira, 20 de abril de 2011

MAR DE TUBARÃO.

     Não  sei em que ano ocorreu, nem sei se esse ano existiu, nem ninguém sabe, mas todo mundo viu, ou conhece alguém que jura que viu. Onde também não conto para não mentir. Mas de algo sei diante dessa minha infinitude do não saber, foi numa grande cidade, como Rio, Salvador,Niterói... Niterói não, faltam alguns milhões para ser grande como devo contar. 
     Também tem mar, porque onda forte preciso na história. Onda que leva e traz gente, que salga cabelo de branco e corta lábio, que dá paisagem de arrebatar e faz pensar em morte. Só mar me serve.
     Rio é mais calmo, afoga gente eu sei, nesse jeito mentiroso de ser doce. Tem peixe mole, que desmancha em paladar diferente. Tem margem demais que mar não tem, árvore à vista, morrete de terra, tem casa ao olho, até gente quase sempre tem.
    Mar não, mar é aquele estirão d'água sem fim. Bicho traiçoeiro- repete mãe cuidadosa que mete medo em filho sem juízo- que encosta lá no céu numa reta horizontal; já aí foi  professora que ensinou prá ninguém mais confundir com vertical.    
     Praia distante, bem longe nesse mar que conto. Mar de verdade, com peixe grande que não se vê, só se imagina no fundo; tubarão, lula gigante, arraia maior ainda. Peixe pequeno também, colorido e bonito que em aquário não vive, morre de saudade do sal.
     Com essa saudade toda, nas suas íntimas águas, Valentina escolheu morrer no mar. Sozinha remou o barco, braços e coração forte, numa tarde qualquer. Cansou da gente toda. Gente demais na sua cabeça. 
      Sua cesta de palavras transbordava, mas as dele ali não mais cabiam. Tinham se ido, graníticas letras se juntando e formando frase de decisão, que no fundo de sua alma caiu dizendo não. 'Não te amo mais'. Como não mais? Mais? Quando esse mais se tornou menos? Ela não percebera. Sempre acreditou no milagre do renascimento. O feto amoroso saindo do coração dele numa anatomia maluca; mas ele continuava lá dentro, gerado e engordando, esperando outra mulher para ser parido, aquela pela qual ele o arrancaria de dentro, com as próprias mãos.
     Não ela, não mais. O que fora para ele?  O que além de adorno p'rá olho e massa de pão cheirosa, pudim de leite condensado que ele gostava de comer nos sábados à tarde antes do futebol? 
     Isso tudo pensava no cair da nuvem, e correr pelo mar. A cidade ficando p'rá trás, cidade de areia, de abelha, de solidão que ela não mais suportava.
     Foi difícil sair do sonho, pular fora da imagem onírica qual tela de surrealista pintor, como daqueles que ela tanto gostava. E ele também. Musa de Dali, agarrada em seus bigodes, tentou. No óleo ficou muito tempo esperando ser amada como Gala, e  muito ainda mais esperou. Vã espera diante da realidade que a acordara para dançar na fogueira das poucas palavras que ele tatuou: 'Eu não te amo mais'. Como eliminar esse eco dentro de si? 'Eu não te amo mais.' Como esquecer o timbre grave da voz dele? 'Eu não te amo mais.'
     Talvez tenha até mesmo tentado esquecer, mas cansou, como moribundo cansa ao tentar enganar a morte e mais sofre até expiar enfim, no suspiro resignado da inutilidade.
      Ao cair na maré longe, ironicamente só um pensamento restou. O medo dos tubarões. Sorriu na água cálida num resquício de si mesma. Que diferença faria? Mas era melhor morrer com todos os membros, sem mordida do bicho, ir dormindo no sono que o frio traria.
      Nadou para longe do barco, só um pouco porque mais não precisava diante da decisão tomada. As ondas não eram tão fortes ou frias quanto pensara, 'Eu não te amo mais', nem o céu tão escuro, 'Eu não te amo mais', nem o sono chegava, 'Eu não te amo mais', como morrer acordada? Não fora esse seu plano. Se ele não me ama mais, por que o amo tanto?
      Ao perceber um pedaço de madeira vindo em sua direção, flutuando nas águas mornas, imaginou ver a barbatana de um tubarão.
 Nadou de volta ao barco.

Tela de Edward Cucuel - Pintor Americano - (1875/1954)
Teresinha de Oliveira.
     

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