quinta-feira, 28 de julho de 2011

Bom dia, Sol!


Entro sem bater ou pedir licença para entrar. Lanço mão da conhecida senha para invadir esse espaço tão caprichado, com algumas palavras tortas.

Quem conhece minha mãe a desconhece em igual proporção. Não que seja uma mulher misteriosa, enigmática, ao contrário. Mas quando julgamos não haver nada mais por descobrir sobre ela, eis que surgem revelações sobre talentos desconhecidos, histórias divertidíssimas sobre sua juventude, uma citação na ponta da língua de um poeta persa que só ela conhece.

Não tendo como escapar da nostalgia, sou tomada por reminiscências: nossas conversas à varanda sobre primeiros namorados – difícil encontrar moça de sua geração tão precoce! Aos 12 anos já beijara na boca, para minha inveja de menina ˗, suas roupas almiscaradas, sua gargalhada alta, seus cadernos (tantos cadernos) espalhados pela casa, os óculos sempre tortos pelo hábito de esquecê-los no rosto ao dormir.

Lembro-me em particular de um episódio em que, sentada à mesa com o inseparável cigarro, a xícara de café já morno, a avistei escrevendo freneticamente em um dos seus cadernos. “Adoro o som do grafite no papel, você não?”, ela perguntou. Confesso que jamais havia pensado nisso; concluí, à época, que ela estaria ficando louca, já que era alta madrugada, e ela estava debruçada sobre seu “ofício” há umas quatro horas seguidas. “Só faltam 40 gatos para ela se tornar uma Hilda Hilst...”, pensei. Parece que ela adivinhou meu pensamento, porque pouco tempo depois disse que a loucura era uma bela forma de refúgio. “Deve ser fascinante morrer completamente louco”. Estremeci.

Tantas vezes a vi dobrar-se ao verbo com devoção... “Discutia” com os autores nas próprias páginas dos livros, todos rabiscados, ainda que seja criminoso referir-me à sua caligrafia como rabisco: sua letra é lindíssima, a mais bonita que já vi. Apesar de sua filha, eu proibia que ela tomasse emprestados meus livros, sob o risco de voltarem sujos de café, manga, ou o que mais surgisse no caminho de sua leitura. Dei-me conta, tarde demais, de que os livros gostam de quem os toma assim, com entrega e despudor. As páginas limpas demais de meus livros denotam assepsia; os dela demonstram uma relação de amor.

Depois vieram os filmes, outra compulsão. Assistia a três, às vezes a quatro por dia. Ia desde os cult do cinema europeu às açucaradas comédias românticas americanas, sem preconceito. Não raras vezes a flagrei degustando infantis da Disney com um entusiasmo de dar inveja às crianças.

Trata-se, ainda, da única pessoa desse mundo que acorda de bom humor todos os dias. Só quem convive sabe o quão irritante isso pode ser. Não satisfeita em ser feliz sozinha, ela faz questão de contaminar a todos em volta: já cedo começa a cantar jingles antigos, à la “Crê-Cremogema-Cremoge-ma-é-a-coisa-mais-gostosa-desse-mun-do...”. Em seguida somos bombardeados com “Bom dia sol, bom dia ar, bom dia água...”. Parece inofensivo e até pueril, não fossem os altos decibéis que sua potente voz alcança sem esforço às seis da manhã.

Como mãe é a melhor avó que existe. As netas podem tudo; e é inimaginável a extensão deste “tudo”. Para se ter ideia, um dia fui buscar minha filha em sua casa e, para meu espanto, estavam as duas, avó e neta, com as mãos lambuzadas de tinta. Até aí nada demais, até que visualizei os muros brancos da casa: estampavam diversas mãozinhas, umas maiores, outras menores, em uma aquarela de cores. Van Gogh não tinha tanta inspiração.

Hoje é seu aniversário. Felizmente, minha mãe é avessa a clichês, ainda que eu tenha escorregado em alguns ao escrever esse texto. Como dispensa de bom grado o que a maioria das pessoas ganha em datas assim, resolvi fazer-lhe uma surpresa. O surpreendente é que pensei ser difícil começar, e de repente me vi tendo que ser suscinta sob risco de ser prolixa ou só a ela agradar. Escrever sobre uma personalidade tão incomum e divertida é fácil. Ao final, concluo que o presente é meu. Ops, lá vou escorregando no clichê novamente...

Feliz aniversário, mãe. Com todo o meu afeto.

Ana Cecília

4 comentários:

Anônimo disse...

Que texto mais lindo!!!

Parabéns, Teresinha!

Gosto demais de você - depois de ler isso, então...

Tudo de bom pra você, continue nos inspirando em cada post e em cada comentário.

Um abraço cheio de ternura.

Anônimo disse...

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas."

(Manoel de Barros, pensando em você, certamente)

bea disse...

Um abraço de parabéns do outro lado do Atlântico. Tita

Teresinha Oliveira disse...

Uau! Muito obrigada, Ciça. Amei o texto. Nem eu sabia que essas minhas pequenas maluquices diárias eram marcantes. Mas vamos lá, todos juntos... ♫ Bom dia, sol, bom dia mar...♪ Hoje será um lindo, um lindo, um lindo dia :0)

Obrigada Andressa, pelo Manuel de Barros. Eu o amo, ainda mais agora.
É no papel que a angústia e a profundidade de cada um se revela.
Um dos meus poetas favoritos é o Augusto dos Anjos. Preciso dizer mais? Um grande beijo.

Poxa, Tita, parabéns de além-mar nunca tinha recebido.Estou envaidecida. Um grande beijo cá dos trópicos.